Café filosófico - LOU MARINOFF

 

CAFÉS DE FILÓSOFOS

A Europa está repleta de cafés de filósofos, que agora estão se espalhando rapidamente pela América do Norte. Há poucos requi­sitos técnicos para essas reuniões filosóficas informais; tudo que é necessário é um filósofo disposto a iniciar o trabalho para mediar as discussões toda semana, todo mês, ou esporadicamente. Em nossa sociedade altamente tecnológica e veloz, o luxo da exploração em câmera lenta do mundo das idéias é único. Todos os tipos de pesso­as aparecem nos grupos que conduzi ou de que participei, mas uma característica comum, freqüente, é o senso de alienação da cultura de massa e a percepção de que, como o valor de mercado de pensar por conta própria está diminuindo, isto está se transformando em uma arte perdida.

Se você está satisfeito só com a cultura de tablóide — bate-papos na TV, filmes vazios, livros instantâneos e vidas descartáveis —, tem à sua disposição uma dieta regular de alimentos para não pensar, que lhe é servida diariamente. Mas se está procurando algo mais, terá de ser muito mais perseverante. No nosso mundo de 57-canais-e-nada, essa busca por algo mais está provocando o crescimento dos grupos informais de discussão filosófica. A troca de idéias é uma mercado­ria valiosa — apesar de não constar na listagem de Wall Street — e geralmente é gratuita. Os cafés de filósofos estão devolvendo a filo­sofia à sua intenção original de fornecer alimento para o pensamen­to das pessoas na vida diária, e estimulá-las a levarem uma vida mais examinada. Sócrates praticava a filosofia no mercado, aceitando to­dos os que apareciam, disposto a discutir qualquer coisa com qual­quer um, a qualquer hora. Essa é a tradição do café dos filósofos.

Fui mediador de um Fórum de Filósofos mensal em uma livra­ria de Manhattan e outro em um famoso café em Greenwich Village.

Há muitos freqüentadores habituais que comparecem todos os me­ses, mas também sempre aparece gente nova. Os freqüentadores compõem um perfil de Nova York e, conseqüentemente, um perfil da humanidade! São, em geral, trabalhadores e estudantes. Embora seja possível estabelecer um tópico para uma sessão particular, geral­mente deixo que as pessoas reunidas sugiram e que o grupo as con­duza.

Todos os tipos de temas são discutidos, inclusive itens impor­tantes como o sentido, a moralidade, a fé e a justiça. Mediei deba­tes sobre como superar a alienação, o que a tecnologia significa para a humanidade, e, até mesmo, como encontrar pessoas. Os temas abordados na Parte II deste livro muitas vezes eram mencionados em grupos, exatamente como em um aconselhamento individual. Alguns dos freqüentadores habituais tinham os seus temas preferi­dos, mas independentemente do tópico abordado, todos se bene­ficiavam ouvindo o ponto de vista do outro. Não se pode esperar um acordo universal em um debate público. Mas o que se obtém é igualmente útil: uma oportunidade de contestar as opiniões de outras pessoas, de ter as suas próprias opiniões contestadas e de aprender a harmonizar ou tolerar opiniões contrárias. Quer a con­testação reforce ou subverta a sua posição, a sua postura filosófica será a mais sólida.

Só há uma regra fundamental em meus grupos de discussão: ci­vilidade. Sendo corteses, os membros do grupo também praticam outras virtudes ao mesmo tempo: paciência, atenção, tolerância. Qualquer que seja o tema em discussão, praticar essas virtudes cons­titui uma lição filosófica por si só. Também desestimulo a citação nomes — isto é, referência a obras filosóficas publicadas. A discus­são filosófica fora do ambiente acadêmico trata do que você pensa, e do que os outros no grupo pensam — não do que pensa alguém que seguiu a carreira de pensar. Se o grupo está discutindo justiça, a matéria-prima são as experiências particulares de justiça ou injusti­ça dos participantes e suas idéias gerais sobre o assunto. Você não precisa de um Ph.D. em filosofia para ter experiências e pensar por si mesmo. As pessoas que simplesmente mencionam nomes, ou ten­tam impressionar os outros com a sua erudição, não estão perceben­do a intenção do debate.

 

“Pois o homem que pensa por si mesmo se familiariza com as autoridades por suas opiniões somente depois que as adquiriu e meramente como uma confirmação delas, enquanto o filósofo de livro começa com as suas autoridades, e dessa forma constrói suas opiniões juntando as opiniões dos outros: a sua mente, então, se compara à do primeiro como um autômato se compara a um homem vivo. ”

Arthur Schopenhauer

 

A regra da civilidade é fundamental quando tratamos de ques­tões delicadas. E, pode acreditar, penetramos em questões mais ar­riscadas do que você já ouviu falar até mesmo nos programas mais chocantes da televisão ou do rádio. Não há nenhum tabu nem cen­sura em meus debates filosóficos, contanto que as regras básicas se­jam obedecidas para nos ajudar a exercitar a razão juntamente com a manifestação apaixonada. Não existem coisas como pensamentos impensáveis — tente pensar em algo que não pode ser pensado! Discutimos raça, sexo, justiça, religião, liberdade, dinheiro, drogas, educação e outros temas que estão se tornando difíceis, se não im­possíveis, de serem examinados aberta e francamente em nossa socie­dade cada vez mais politicamente correta.

O propósito que orienta esses grupos é discutir coisas que não seriam discutidas de outra maneira — por causa de sua inconveni­ência ou de sua complexidade, ou ambos. Esse intercâmbio livre de idéias é o que se supõe que seja a América; portanto, graças a algu­mas livrarias e cafés, delimitamos o nosso território, no qual perma­necemos devotados à liberdade individual e de expressão. Até agora, os comissários políticos têm-nos deixado em paz, o patrulhamento ideológico não efetuou nenhuma prisão, e os ideólogos hipersensíveis não nos processaram por ofendê-los. Talvez precisemos nos empenhar mais.

Especialmente quando se trata de temas melindrosos, nos faz bem simplesmente ouvir outras pessoas se encarregarem deles. Geralmente nos concentramos nas pessoas que pensam de modo semelhante a nós; aposto que a maioria dos seus amigos compartilha de quase todas as suas opiniões. Sempre ficamos felizes de oferecer a nossa opinião importuna, mas sempre nos enriquecemos mais com a opinião im­portuna do outro. Ouvir outras perspectivas não muda necessaria­mente a nossa opinião, mas, pelo menos, nos faz pensar duas vezes. A imparcialidade precisa ser exercitada — você precisará dela quan­do a sua disposição filosófica atual não estiver mais lhe servindo. Precisamos ter opiniões, mas nem sempre sabemos se são certas ou erradas. Se quiser manter uma filosofia de alto desempenho, terá de afiná-la periodicamente e estar disposto a fazer mudanças quando forem necessárias.

Se está intrigado, espero que procure — ou instale — um café de filósofos no seu bairro. Leve suas questões principais: existem li­mites para a tolerância social? Qual é o propósito da educação? Qual é a melhor maneira de educar os filhos? A mídia exerce um poder excessivo? A nossa cultura está em decadência? Quais são as conse­qüências da substituição da tradição escrita pela visual? O que sig­nifica levar uma vida virtuosa? Como fazer a diferença entre o certo e o errado? Existem meios objetivos para julgar o que é bom e o que é mau? Existem sentido e propósito? Deus existe? Deus é homem ou mulher? Isto tem importância? A moralidade pode ser reduzida à biologia? A moralidade é uma invenção humana? O que é beleza? O que é verdade?

Se você trabalhou sozinho ou com alguém, deve ter esbarrado em alguns desses temas, porém é mais provável que se tenha con­centrado em preocupações mais imediatas e pessoais. Ainda assim, as pequenas e grandes questões freqüentemente se sobrepõem. Tra­tar de temas mais amplos reforça a sua filosofia pessoal, o que, por sua vez, a tornará mais estimulante e útil para a sua vida cotidiana.

As grandes questões continuam grandes. O que era discutido em Atenas 2.500 anos atrás continua sendo discutido hoje. Ser capaz de debater essas coisas faz parte daquilo que significa estar vivo e bem.

DIÁLOGO SOCRÁTICO

Enquanto discussões filosóficas informais germinam rapidamen­te na América do Norte, um método mais convencional, conhecido como Diálogo Socrático, também está criando raízes. Não deve ser confundido com o método socrático (com o qual tem uma certa relação). O Diálogo Socrático é uma maneira organizada de respon­der a algumas grandes questões. Leonard Nelson — um filósofo ale­mão com nome inglês — esboçou o processo no início do século XX. Foi gradativamente aperfeiçoado pelos práticos alemães, holan­deses e, recentemente, americanos.

Para esclarecer o título potencialmente confuso desse processo, preciso explicar por que o nome de Sócrates é invocado em dois contextos diferentes.

A teoria do conhecimento de Sócrates, como relatada por Platão, diz que nós todos o trazemos desde o nascimento. Se lhe fizerem um pergunta difícil como “O que é justiça?”, você provavelmente não será capaz de dar uma definição clara de imediato, mas poderá apresentar alguns exemplos tirados de sua própria experiência. Mas se você pode dar um exemplo de alguma coisa, Sócrates diria que já deve saber o que é essa coisa — implicitamente, e não explicitamen­te. Esta é a base do Diálogo Socrático de Nelson: um processo confiável que o orienta a definir explicitamente o que já sabe impli­citamente.

Sócrates também ficou famoso por investigar as pessoas através de uma série de perguntas, até extrair-lhes contradições. Se você apresentasse a Sócrates uma definição descuidada de justiça, e, en­tão, ele o levasse a admitir que a sua definição poderia dar margem à injustiça, você teria caído em contradição. Em conseqüência, a sua definição não poderia estar correta. Tecnicamente, isto é chamado de método refutatório, mas é conhecido como método socrático. Observe que ele revela somente o que algo não é, não o que é. No fim do dia, esse método revelará uma quantidade de definições de justiça (ou o que estiver sendo discutido), mas nenhuma aproveitável.

O Diálogo Socrático, ao contrário, visa diretamente o que a coisa é. Usa a experiência pessoal como base para encontrar uma defini­ção universal de uma coisa, que seja explícita e exata. Emprega a dúvida individual e o consenso rigoroso para permitir que você res­ponda a perguntas como “O que é liberdade?” ou “O que é integri­dade?” Não é o tipo de coisa que você pode fazer na sua pausa para um café; na prática, a maioria dos Diálogos Socráticos é conduzida durante um fim de semana inteiro. Leva cerca de dois dias para se obter um resultado com um grupo pequeno orientado por um mo­derador treinado. Dois dias são, na verdade, um período curto, considerando-se o que está em jogo. Quer dizer, você pode facilmente passar a vida sem saber exatamente o que é justiça, liberdade ou in­tegridade, embora elas possam ter uma importância fundamental para você. Investir um fim de semana para se ter uma noção mais precisa de um desses conceitos, escorregadios, mas eternos, é, a meu ver, um tempo bem empregado. É como um safári filosófico na grande re­serva de caça da sua mente.

O processo

Diálogos Socráticos funcionam melhor com grupos de cinco a dez participantes. Esse número permite uma boa variedade de expe­riência pessoal, tempo suficiente para todos participarem, e a possi­bilidade real de se chegar a um consenso. Com poucas pessoas, não há pontos de vista suficientes para enriquecer o processo. Com gen­te demais, não se consegue que todas participem do mesmo tema.

O primeiro passo em um Diálogo Socrático é decidir qual a pergunta a ser respondida. Em geral, isso é feito antecipadamente, se bem que essa parte do processo possa ser um empreendimento educacional ampliado. As melhores perguntas tomam a forma de “O que é X?”, com X sendo liberdade, integridade, felicidade, realiza­ção, esperança, amor ou qualquer outro conceito importante e ine­fável. Outros formatos também podem funcionar, mas não se pode errar com a formulação clássica.

O segundo passo consiste em cada participante pensar em um exemplo de sua própria experiência de vida que envolva X. Pode ser um exemplo simples que não esteja mais acontecendo e que não desencadeie emoção demais, para que possa ser relatado objetiva­mente e — se preciso — resumidamente. Todos apresentam breve­mente o seu exemplo ao grupo.

Em seguida, o grupo escolhe, por consenso, o exemplo a ser examinado. Este será o veículo inicial para se chegar a uma definição, mas você terá de ser capaz de encontrar uma resposta, independen­temente do exemplo escolhido. Escolha simplesmente um exemplo com que todos possam se identificar em certo nível, para maximizar a percepção de todos. O roteiro selecionado é então contado de novo com muito mais detalhes, e o grupo faz as perguntas. Não é permi­tida nenhuma pergunta hipotética. Nesse estágio, e durante a maior parte do processo, é rigorosamente “só os fatos”.

Então, o grupo decompõe a história em partes mínimas. Até mesmo algo que aconteceu durante o tempo real de apenas um ou dois minutos pode ser composto de vários passos. Em alguma parte dos detalhes ordenados está exatamente o que você procura. Pode estar em um passo específico ou entre passos ou em mais de um passo, ou em uma combinação de passos. Apontar com precisão a localiza­ção de X leva-o ao ponto médio exato, pois quando todos concor­dam a respeito de onde X ocorre, você pode começar a decidir o que é X. A idéia é que, se você capta a experiência real de uma coisa, pode identificá-la. Isso ficará mais claro quando você analisar o exem­plo seguinte.

Depois, o grupo formula uma definição — geralmente apenas uma frase — que se ajusta ao exemplo em debate. A experiência em que você esta concentrado proporciona um bom ponto de referên­cia concreto para verificar a sua exatidão. Uma vez satisfeito, você retorna às experiências pessoais dos outros e verifica se elas se ajus­tam à definição a que você chegou, e a modifica de acordo. Voilà! Uma definição universal foi articulada.

O estágio final consiste em tentar refutar a definição com contraexemplos que não sejam os já apresentados. Este é o único ponto no Diálogo Socrático em que as situações hipotéticas são permiti­das. Se puder contradizer a definição, consequentemente você a apri­morará. Talvez se surpreenda ao ver como a definição que tão habilidosamente compôs resiste até mesmo a essa fase improvisada.

 

Fonte:

MARINOFF, Lou. Mais Platão, menos Prozac; tradução de Ana Luiza Borges. – 5ª. Ed. – Rio de Janeiro: Record, 2002. Pág. 310-317

Comentários