PERGUNTE A PLATÃO - LOU MARINOFF - anotações de leitura

 

“A vida é uma jornada milagrosa cheia de surpresas e desafios, transbordante de alegrias e tristezas, abundante de pensamentos, sentimentos e experiências que trazem tanto bem-estar quanto mal-estar. Mas nos enganamos ao tratar os mal-estares intermitentes da vida como sintomas de moléstia. Quando fazemos aquilo que somos feitos para fazer – quando realizamos nossa busca – esforçamo-nos para obter unidade e harmonia entre as forças adversárias do mito (mitologia), do logos (razão), do cosmo (ordem) e do caos (desordem), forças que, não sendo assim, puxam e empurram o ser humano em várias direções diferentes. Quem unifica e harmoniza este quarteto – em outras palavras, seu maestro – é o espírito”.

LOU MARINOFF. Pergunte a Platão, p.328 - 329

APEGOS A LEMBRANÇAS

Assim como o mal-estar é provocado pelas expectativas, que são apegos a acontecimentos futuros, também pode ser causado pelo apego a acontecimentos passados – suas lembranças.

De certo modo, sua identidade é a soma total de suas lem­branças. A maioria das pessoas armazena todo tipo de lembran­ça, as boas, as más e as feias, e, juntas, elas lhe dão uma boa idéia do tipo de vida que você levou. Parte significativa de sua área de armazenamento da memória pode estar na mente inconscien­te. Se Freud estiver certo, é ali que encontraremos as lembran­ças desagradáveis que reprimimos para defender nosso ego. Mas o dito de Sócrates “conhece-te a ti mesmo” significa que o co­nhecimento consciente da memória inconsciente é vital para a compreensão de si mesmo.

Falando em termos filosóficos, você tem mais poder sobre o mal-estar causado por lembranças desagradáveis do que ad­mitem muitas teorias psicológicas e psicanalíticas. O que acon­tece em sua memória é apenas outro conjunto de circunstâncias da vida. Nenhum de nós tem o poder de mudar os aconteci­mentos passados e devemos enfrentar o passado da maneira mais honesta possível para compreender esses eventos e nós mesmos. Mas os acontecimentos passados e nosso papel neles são meros conjuntos de circunstâncias apresentados à mente ativa e (com a filosofia como um guia útil) você tem bastante espaço para escolher sua visão ou sua interpretação do passa­do. Como Epicteto nos recorda, não são as próprias circuns­tâncias que provocam bem-estar ou mal-estar, mas a opinião que formamos delas.

Você também escolhe o modo como se envolve nos aconte­cimentos atuais e, deste modo, como forma seu próximo passado. Se quer ter lembranças melhores, comece a trabalhar no presente! As boas coisas que fizer hoje serão boas lembranças amanhã.

Você devia se esforçar para dissolver seu apego às más lem­branças. Se conseguir, vai se poupar de muito mal-estar. É claro que precisa saber como efetuar esta dissolução. Não precisa apa­gar as células do cérebro nem erradicar suas recordações. Uma das piores maneiras é tentar fugir do passado. Quem tenta evitar a lembrança de coisas desagradáveis ou busca anestesiar-se do sofrimento produzido pela recordação delas (com álcool, drogas ou outros meios) acaba reforçando seu apego a essas lembranças.

É muito melhor perguntar-se: “Essas lembranças são de quem, afinal?” Embora “você” tenha uma “identidade” baseada em grande parte em suas lembranças específicas e nas lembran­ças dos outros sobre “você”, sua essência humana mais profun­da — você de verdade — independe dessas próprias lembranças. Descubra quem é “você” — sozinho, sem as recordações — e dissolverá seu apego às lembranças que sua “identidade” pos­sui. Sem a lembrança-identidade, você é um vaso cheio de idéias, avaliações, apetites, aversões, desejos e apegos de todos os ti­pos. Mas originalmente o vaso estava vazio. Volte àquele estado original e sua memória será como tantas folhas das árvores, fo­lhas que são lindas de se ver mas que mudam seus atributos com as estações. Apreciar a beleza das folhas que mudam é como recordar as coisas, mas sem apego. O novo desabrochar da pri­mavera ou as cores do outono não causam mal-estar a ninguém que admire a floresta. Pelo contrário! Nem as lembranças deli­cadas ou coloridas deveriam causar mal-estar a ninguém que admire a vida. Pelo contrário!

Em resumo, tudo o que você está acostumado a fazer pode ser mais bem feito sem apego. Além disso, dissolver seus apegos me­lhora o bem das coisas que faz e reduz igualmente o mal e a feiura.

 

Exercício 3. Faça uma lista de seus maiores apetites e aversões e depois tente distinguir quais são mais úteis a você (isto é, quais promovem seu bem-estar de viver) e quais os mais inúteis (isto é, que promovem seu mal-estar de viver.) Em seguida, dê mais um passo e faça uma lista das idéias pelas quais você tem o maior apetite e a maior aversão e veja quais lhe são mais úteis. Essas idéias mais úteis são os alicerces de sua casa filosófica.

 LOU MARINOFF. Pergunte a Platão. p.403 - 405

 “As pessoas mais realizadas são aquelas que sempre se ocupam no trabalho e no lazer, que amam os dois e que celebram a vida conforme suas próprias regras do jogo. E as culturas que costumam reverenciar os mais velhos são potencialmente mais humanas que aquelas que tratam seus velhos como maquinaria desatualizada. A qualidade da contribuição que se dá à família imediata e à família humana em geral costuma aumentar com a idade (pelo menos por algum tempo) e, assim, é ao mesmo tempo tolo e desumano desperdiçar o potencial daqueles que obtiveram sabedoria através de uma vida inteira de experiência”.

LOU MARINOFF. Pergunte a Platão. pág.314-315

CASOS DE OFENSA E DANO NO ENSINO SUPERIOR

Você talvez suponha que o sistema de ensino superior seria o lugar ideal para planejar currículos que revertam os danos causados pela confusão entre ofensa e dano, mas não é o que acontece. Na verdade, é o contrário. As próprias universidades são em grande parte responsáveis (e culpadas morais) por perpetuar confusão. Ensinaram e, portanto, disseminaram essa confusão em toda a sociedade: entre profissionais e leigos de todos os tipos, em todas as camadas sociais. Vou apresentar alguns exemplos ilustrativos.

Os casos partilham um tema em comum, ou seja, a questão relações raciais num mosaico cultural cada vez mais variado O que é verdade nos Estados Unidos também é verdade no resto do mundo: para que o bem-estar social substitua o mal-estar, é preciso dar uma ênfase maior à humanidade, que une as pessoas, e não à etnia ou a outros fatores que as dividem. As lições aqui são para toda a aldeia global, não só para os Estados Unidos. Conforme as populações ficam mais diversificadas em todo o mundo, é cada vez mais básico, para o florescimento pessoal e a paz no mundo, que as pessoas percebam-se e concebam-se como seres humanos únicos, e não como meros representantes desta ou daquela raça ou tribo. Para que o bem-estar substitua o mal estar, a humanidade precisa ter precedência sobre a etnia.p.121-122

 

DESGASTE POR ATACADO

Também devo dizer que esses casos de desgaste individual estão começando a se acumular nas empresas, onde se traduzem em custos elevados em termos de perda de produtividade e falta de continuidade. Às empresas têm relatado um nível sem precedentes de absenteísmo dos empregados, de faltas por doença, de síndrome da fadiga crônica e de outras enfermidades não diagnosticadas. São estes os mal-estares e também as doenças dos seres humanos excessivamente mecanizados. Os praticantes da filosofia têm muitas abordagens para este problema, desde os diálogos socráticos com grupos e equipes nas organizações afetadas até o aconselhamento filosófico dos indivíduos atingidos. No geral, a cultura empresarial tem sido míope demais para tirar o máximo de vantagem da filosofia. Parece que preferem sofrer perdas crescentes de produtividade e aumento do custo de assistência médica a fazer pequenos investimentos em medidas preventivas, como tratar seus empregados como seres humanos que pensam e buscam significados, em vez de engrenagens máquina empresarial. Demasiados executivos acham que conceder aos empregados uma hora por semana para participar de um diálogo socrático ou ter uma sessão individual com um Diretor de Filosofia seria “perda de tempo”. Em vez disso, os mesmos empregados esgotados ou desmotivados desperdiçam e dias por mês de produtividade perdida!

O que atrapalha a solução aqui é, em parte, um resíduo empresarial da mania da “ética protestante do trabalho”, que, a princípio, tornou possível a ciência, a tecnologia e a tecnocracia.

 

LOU MARINOFF. Pergunte a Platão. Ed. Record, 2005, p.309


Evoluímos dos bandos primordiais de caçadores e coletores e somos programados para viver em pequenos grupos íntimos que se deslocam por espaçosas paisagens naturais — não sermos esmagados por densas hordas de estranhos que abrem caminho por impenetráveis selvas urbanas. Temos a tecnologia necessária para nos sustentar numa densidade populacional  excede imensamente o que os biólogos evolucionistas e antropólogos chamam de “número ótimo” de seres humanos, mas só a um formidável custo social, que inclui a exposição diária a indiferença, incivilidade, estresse, ansiedade, agressão, violência, crime e a todo tipo de comportamento desequilibrado, é o que acontece aos seres humanos quando nossa formação contra o veio de nossa natureza. Produz um mal-estar monumental.

Vários filósofos reconheceram este problema e tentara resolvê-lo retirando-se para pequenas comunidades em ambientes naturais. Os Sábios da Floresta na índia, os epicuristas Grécia, os transcendentalistas da Nova Inglaterra nos Estados Unidos e muitíssimos hippies da década de 1960 descobrira imensa paz, amor e cooperação vivendo em pequenos bandos rurais. Contrariamente à errônea concepção popular, os Sábios da Floresta originais não eram eremitas ascéticos e antissociais. Escreve Rabindranath Tagore: “A vida dos brâmanes na floresta não era antagônica à vida social do homem, mas sim em harmonia com ela.” Eles buscavam a simplicidade para cultivar melhores coisas da vida, como a amizade. Assim, Epicuro disse!

“A felicidade e a bem-aventurança não combinam com abundância de riquezas, posições louvadas, cargos ou poder, mas com libertar-se da dor, com suavidade de sentimentos e com um estado mental que estabeleça limites de acordo com a natureza”.

LOU MARINOFF. Pergunte a Platão, p.238 - 239

GENTE DEMAIS SENTE mal-estar desnecessário devido a algu­mas confusões fundamentais. Com frequência cada vez maior atualmente, as pessoas confundem privilégios com direitos, obje­tividade com subjetividade, desejo com vontade, querer com preci­sar, preço com valor, riqueza com realização, realidade com aparência e mesmice com igualdade. Sem mencionar doença com mal-estar! Nesta linha, as pessoas causam a si mesmas e aos outros muito sofrimento desnecessário por ignorar a distinção en­tre ofensa e dano.

Lu Marinoff. Pergunte a Platão. Record, 2005. Pag. 102

IDENTIDADE INDIVIDUAL x IDENTIDADE GRUPAL

“Ao trocar a própria identidade pela identificação com algum grupo menor que toda a raça humana, você se torna parte de um subgrupo da humanidade. Mais cedo ou mais tarde, pensará em seu subgrupo como fundamental para a causa humana e nos outros como secundários. Passará a ver o mundo dividido entre “nós” e “eles” – nós e os outros; os salvos e os condenados; os crentes e os infiéis; o proletariado e a burguesia; os opressores e as vítimas; esta tribo e aquela tribo. E sempre o “nós” é considerado superior ao “eles”. Toda paz será no máximo temporária, a menos que nos vejamos uns aos outros como indivíduos iguais em nossa humanidade. É inevitável que nossa divisão em grupos crie desigualdades, ou sua ilusão”.

LOU MARINOFF. Pergunte a Platão, p. 245

Jovens despreparados em instituições de ensino enganosas, hoje são adestrados no “relativismo”, ou seja, qualquer coisa é certa. Isso é perigoso ou não? Tivemos autoridades constituídas que por não serem capazes de escrever, perverteram a língua por meio de decreto-lei, estabelecendo que de qualquer forma deve ser aceita a fala, a escrita, etc. Assim o nível só vai para baixo.

E o pior é que que docentes igualmente mal preparados, incapacitados, também encorajam e propalam os ensinamentos de que “todas as verdades são relativas”. Pensar, raciocinar é realmente trabalhoso, muito difícil.

Lou Marinoff escreveu: “Agora encontramos uma pedra fundamental do próprio relativismo moral: a noção tristemente enganosa de que todo conhecimento é relativo, ponto final. Me desculpem, mas não é. A expectativa de vida do mundo civilizado quase dobrou durante o século XX devido ao conhecimento digno de crédito. Os astronautas vão à lua e voltam devido ao conhecimento digno de crédito.

Também é verdade que quanto mais sabemos, mais percebemos que não sabemos. Mas isso não significa que não sabemos nada! O mundo humano é um lugar cada vez mais complexo, cada vez mais difícil de compreender. Mas as pessoas lutam sem cessar para entender as coisas. Como fazemos isso?  Em primeiro lugar, construindo conhecimentos dignos de crédito. Platão tinha um famoso cartaz do lado de fora de sua Academia (a primeira universidade), que dizia: “Que não entre quem for desprovido do conhecimento da geometria”. Por que? Porque Platão achava que as verdades matemáticas eram as coisas mais certas e deviam ser aprendidas antes de abordar assuntos mais incertos como a ética e a política.

Acreditava que as maiores questões da vida (como aquelas sobre o que é certo e justo) não poderiam ser adequadamente formuladas antes que as pequenas (como as da geometria) fossem respondidas.

Milhões de pessoas [...] vêm brigando com muitas questões na aldeia global, questões que nos preocupam a todos e que podem nos trazer considerável mal-estar: da economia até a ecologia, da assistência médica até a falta de moradia, da tolerância até o terrorismo. Platão diria que quem não consegue entender as questões pequenas — tais como “Quanto é um mais um?” — tem pouca chance com as maiores. Se você não resolve a aritmética, que é fácil, como poderá sequer começar a distinguir certo de errado, o que às vezes pode ser bem difícil?

Platão também diria que qualquer sistema de educação que deixe de guiar seus alunos para fora da Caverna deve reformar-se ou enfrentar o seu fim”.

LOU MARINOFF. Pergunte a Platão. Pág. 141 - 142

O homem está a maio caminho entre o átomo e o ideal. Sua natureza animal é material e o impele tanto para o prazer quanto para o sofrimento; sua capacidade mental é imaterial e o leva para a união espiritual com o divino. Ou assim acredita, ou talvez imagine. p.166

 

 

Muita gente tende a acreditar naquilo que as autoridades mandam; muitos filósofos tendem a duvidar daquilo que as autoridades mandam e muitos governos tendem a apoiar tudo o que torne mais fácil governar. P.167

O QUE É NORMAL?

 

“Antigamente, quando a religião era forte e a ciência fraca,

os homens confundiam medicina com mágica;

hoje, quando a ciência é forte e a religião fraca,

os homens confundem mágica com medicina”.

Thomas Szasz

 

A arte e a ciência médica dedicam-se a manter a saúde, sarar as fe­ridas e curar as doenças. O que é doença? Em geral, é uma coisa que afeta o corpo de forma a atrapalhar ou impedir seu funciona­mento normal. A maioria dos leigos pode rabiscar uma lista de doenças que sofreram na infância, como sarampo, caxumba e cata­pora — sem falar de resfriados comuns. Os adultos podem ser ví­timas de todo um catálogo de doenças e a maioria de nós conhece alguém que lutou contra o câncer, problemas cardíacos ou o mal de Alzheimer, entre muitas possibilidades. Estamos todos destina­dos a morrer de alguma coisa e, com muita frequência, esta “algu­ma coisa” é uma doença ou alguma complicação dela advinda.

Ainda assim, devemos considerar que a definição de “funcio­namento normal” baseia-se, em parte, em normas sociais, além de biológicas. Por exemplo, se você sofre regularmente de alu­cinações, ou seja, se vê e ouve coisas que ninguém mais ouve nem vê, pode ser chamado de “psicótico’* e diagnosticado com uma doença psiquiátrica. Mas, novamente, se vê coisas que nin­guém mais vê e transforma-as em filmes, ou ouve coisas que ninguém mais ouve e transforma-as em sinfonias, é possível que seja um diretor de cinema ou um compositor erudito. Se consegue domar sua mente selvagem de modo a criar beleza ou clareza sem igual, pode ganhar um Prêmio Nobel, como John Nash. Mas, outra vez, se tivesse alucinações noutro ambiente social, podia ser uma viagem psicodélica normal durante a dé­cada de 1960 ou o trabalho normal do pajé de sua tribo.

Uma das morais desta história é: mesmo as “doenças” de­mocraticamente eleitas do chamado tipo mental podem ser con­sideradas normais caso as circunstâncias sociais sejam propícias. Mas esta moral é uma rua de mão dupla. Se as circunstâncias sociais forem propícias, muitos problemas que de jeito nenhum são doenças podem ser “diagnosticados” como se fossem. E isso pode lhe trazer grandes problemas.

Por exemplo: se você condenasse a antiga União Soviética morando lá, podia ser internado num hospital psiquiátrico em vez de ir para uma prisão política. Por quê? Porque a antiga União Soviética foi declarada pelo Partido um “paraíso dos trabalha­dores”. É óbvio que quem faz objeções a viver no paraíso está maluco. Isso é bastante lógico, mas chamar o inferno ou o pur­gatório de “paraíso” todos os dias, em massa, não faz com que se transformem nisso. Também é claro que se pode abusar da prática médica como meio de controle social ou político.

Outro exemplo: no final do século XIX, todos os candida­tos a empregos públicos no Estado de Nova York (entre outros lugares dos Estados Unidos e do Reino Unido) tinham de se sub­meter a exames frenológicos. A frenologia era ostensivamente uma “ciência” que detectava as características da personalidade das pessoas pela localização de várias protuberâncias do crânio. Uma protuberância atrás da orelha esquerda significava, supos­tamente, que o candidato era corajoso; atrás da orelha direita, egoísta. Dúzias de traços de caráter foram assim “mapeados” nas protuberâncias de todo o crânio. Mas acontece que a frenologia era uma ciência completamente falsa e ainda bem que sua capacidade de exercer controle político e social teve vida curta.

Vejamos outro exemplo: suponhamos que você passou por uma má experiência de vida que lhe causou profunda impressão. Talvez tenha sido assaltado, surrado ou estuprado. Talvez tenha sofrido um grave acidente de carro, ou sido atacado por um ani­mal perigoso, ou participado de combates ou alguma outra situa­ção ameaçadora. Se ainda é incomodado pelo passado, pode ser “diagnosticado" como portador de TEPT, ou Transtorno do Es­tresse Pós-Traumático. Parece impressionante, não é? O que sig­nifica exatamente? Significa que você é incomodado pelo passado. Ou seja, você é incomodado por suas lembranças do passado, seus sentimentos a respeito, suas perguntas sobre ele e seu desejo de entendê-lo para se autopreservar. Desde quando lembranças se tornam uma doença a ser diagnosticada por médicos e alguns psi­cólogos? É essa a melhor explicação que conseguem conceber? Desculpem, mas os filósofos podem fazer igual ou melhor! Todos têm lembranças ruins, assim como boas, mas precisam de expli­cações melhores, e não piores, de seu significado.

O TEPT é uma doença real? Ou é meramente um mal-estar? É classificado como “doença” pelo DSM (Manual de Diagnósti­co e Estatística) da Associação Psiquiátrica Americana. Assim que algum mal-estar é votado para ser incluído no DSM como ‘‘doença", os psiquiatras e psicólogos clínicos podem “diagnosticá-lo". Sim, as “doenças” do DSM são democraticamente elei­tas! Cada vez mais o gerenciamento dos custos da assistência médica exige que os terapeutas da palavra façam “diagnósticos”, senão as seguradoras de saúde não os reembolsam por seus ser­viços. Assim, é bom que encontrem alguma “doença”, se que­rem ganhar a vida. O TEPT é uma doença útil. Cobre um grande terreno: todo o seu passado. Quanto mais velho se fica, mais coisas podem ter dado errado na vida.

Todo mundo tem um passado e quase todo mundo lamenta ter feito ou não certas coisas, e quase todo mundo consegue recordar coisas agradáveis e desagradáveis que lhe aconteceram. Como orientador filosófico, eu diria que quem se sente incomo­dado com o passado tem algum mal-estar, mas não necessaria­mente uma doença. Tratar a doença como se fosse um mal-estar é um tipo de erro; tratar o mal-estar como se fosse doença é outro. Como saber a diferença? Assim como a arte do bem vi­ver, nem sempre é fácil.

E seu o ônus de pensar por si mesmo e descobrir o tipo certo de auxílio para a sua situação. O melhor tratamento é o trata­mento adequado. Pergunte. Procure um médico e certifique-se de estar clinicamente bem. Procure um psiquiatra, um psicólo­go, um psicoterapeuta, um assistente social ou um orientador filosófico e peça também suas opiniões profissionais. Enquanto isso, visite sua avó e seu guru local. Mande pôr as cartas do tarô. Mas lembre-se: assim como você deveria ser considerado ino­cente até que provassem sua culpa em questões criminais, tam­bém deveria ser considerado estável, funcional e saudável até que provassem sua instabilidade, disfunção ou insanidade em questões civis, ou seja, na conduta pessoal e profissional da sua vida. Mas a suposição de inocência e a de sanidade foram desgastadíssimas nos últimos anos por forças políticas, sociais e comer­ciais que trabalharam arduamente para minar suas liberdades fundamentais. Isso torna mais difícil conseguir imparcialidade no tribunal, assim como uma opinião isenta de profissionais de “saúde mental” sobre seu mal-estar.

Por exemplo: há algum tipo de coisa acontecendo em sua vida? Tem de se levantar e ir trabalhar toda manhã? Tem reuniões marcadas, apresentações a fazer, prazos a cumprir? Está se pre­parando para provas finais, entrevistas de emprego ou um encon­tro? Está passando por uma transição difícil, como um divórcio ou mudança de carreira? Está criando uma criança ou adoles­cente que venha passando por uma transição difícil? Tem evita­do um confronto iminente com o cônjuge, um colega ou o chefe?

Ainda tenta entender o terrorismo? Se algum desses cenários lhe traz alguma preocupação, então supõe-se que você tenha uma “doença”. Chama-se Transtorno da Ansiedade Social Generali­zada (TASG) e o principal medicamento para “tratá-lo” é o Paxil [antidepressivo cloridrato de paroxetina, vendido no Brasil como Aropax]. Este medicamento, que exige receita médica, vem sendo amplamente anunciado nos EUA, no horário nobre, como panaceia para a chamada “doença” de ter preocupações na vida! O que isto nos diz sobre a suposição de sanidade? Diz que, se você sofre de algum mal-estar, seja qual for, tem uma doença chamada TASG. Em outras palavras, supõem que você seja ins­tável, desajustado ou coisa pior. Quem supõe? As empresas farmacêuticas, que pretendem ganhar muito dinheiro convencendo você de que seu mal-estar é uma doença. Isso não é ciência; é comércio. E no comércio, acautelem-se os compradores.

Como orientador filosófico, eu diria que preocupar-se com os acontecimentos importantes da vida é perfeitamente natural. Atletas e artistas costumam sofrer de “comichões” no estômago antes do início do jogo ou do espetáculo. E isso é bom sinal: significa que estão envolvidos no processo e preparam-se para fazer o melhor. Se não sentissem nada antes, significaria que nem se importam. Quando suas “comichões” ficam fortes demais e se transformam em “angústia da apresentação” — outro mal-estar que não é doença — atletas e artistas têm várias opções à disposição. Betabloqueadores, hipnoterapia, psicoterapia, meditação, ioga, biofeedback e outras técnicas de relaxamento são opções viáveis. Qual delas é melhor depende do caso.

E o que é melhor para seu mal-estar específico também de­pende de você. Assim, se lhe basta ser “diagnosticado” pelo Dr. TV, então ótimo, e melhor ainda para a indústria farmacêutica. Mas se você realmente se preocupa com sua vida, está fadado a sofrer de algum mal-estar ao prever acontecimentos importan­tes e preparar-se para eles. Isso não é uma doença; é uma opor­tunidade! A fraude toda se baseia em sua confusão: se soubesse a diferença entre mal-estar e doença, não precisaria de remédios para tratar dos desafios normais da vida. Então do que você precisa? De uma filosofia de vida! E este livro vai ajudá-lo a desenvolvê-la, ou a articular aquela que já desenvolveu. A vida não é uma doença. E suas dificuldades e tribulações, que às ve­zes provocam mal-estar, também não são sintomas de doença.

Não me entenda mal. A pesquisa médica, financiada pelas empresas farmacêuticas, desenvolveu alguns potentes medica­mentos “milagrosos” para curar ou controlar doenças de verda­de. A natureza, mestra dos bioquímicos e farmacêuticos, também criou medicamentos espantosos com o mesmo objetivo, muitos dos quais ficarão desconhecidos até que transformemos selvas e florestas em estacionamentos. Há quem realmente se beneficie com fórmulas sintéticas como Prozac ou Aropax, assim como outros se beneficiam com ervas naturais. Mas quando a química do seu cérebro se estabilizar e você estiver funcionando bem, ainda vai precisar de uma filosofia de vida para lidar com todos os mal-estares que está fadado a enfrentar. Felizmente, ainda pode obter orientação filosófica “sem receita médica”.

Assim, por favor, pense com cuidado sobre a diferença en­tre doença e mal-estar. Se acha mesmo que sofre de uma doença clínica, dê um jeito de obter ajuda médica adequada: exames, diagnóstico e tratamento. Mas se sofre de um mal-estar, que é um desconforto na consciência e não uma disfunção do corpo, procure ajuda adequada para isso também. Examine seu modo de pensar e de viver. Dê um jeito de entender a sua situação e aplique os princípios que melhor o guiarão nesta travessia. Isso se chama “filosofia aplicada”. O nome que Aristóteles dava a isso era phronesis, ou sabedoria prática.

Nem sempre é possível mudar as circunstâncias da vida, mas sempre se pode mudar a maneira como as interpretamos. A maneira como você interpreta estas circunstâncias é nada mais nada menos que sua filosofia de vida! Eis minha pergunta: sua filosofia de vida funciona a seu favor, contra você ou não funciona? Se já funciona, ótimo; mas você pode fazê-la funcionar ainda melhor. Se funciona contra você, não é tão bom assim; mas ainda se pode fazer com que passe a funcionar a seu favor. Se não funciona, é uma perda de tempo; mas é possível consertá-la e fazê-la funcionar.

Fonte:

MARINOFF, Lou. Pergunte a Platão. 2ª. ed. – Rio de Janeiro: Record, 2005. p.19 - 25

 

 O QUE É NORMAL?

 

“Antigamente, quando a religião era forte e a ciência fraca,

os homens confundiam medicina com mágica;

hoje, quando a ciência é forte e a religião fraca,

os homens confundem mágica com medicina”.

Thomas Szasz

 

A arte e a ciência médica dedicam-se a manter a saúde, sarar as fe­ridas e curar as doenças. O que é doença? Em geral, é uma coisa que afeta o corpo de forma a atrapalhar ou impedir seu funciona­mento normal. A maioria dos leigos pode rabiscar uma lista de doenças que sofreram na infância, como sarampo, caxumba e cata­pora — sem falar de resfriados comuns. Os adultos podem ser ví­timas de todo um catálogo de doenças e a maioria de nós conhece alguém que lutou contra o câncer, problemas cardíacos ou o mal de Alzheimer, entre muitas possibilidades. Estamos todos destina­dos a morrer de alguma coisa e, com muita frequência, esta “algu­ma coisa” é uma doença ou alguma complicação dela advinda.

Ainda assim, devemos considerar que a definição de “funcio­namento normal” baseia-se, em parte, em normas sociais, além de biológicas. Por exemplo, se você sofre regularmente de alu­cinações, ou seja, se vê e ouve coisas que ninguém mais ouve nem vê, pode ser chamado de “psicótico’* e diagnosticado com uma doença psiquiátrica. Mas, novamente, se vê coisas que nin­guém mais vê e transforma-as em filmes, ou ouve coisas que ninguém mais ouve e transforma-as em sinfonias, é possível que seja um diretor de cinema ou um compositor erudito. Se consegue domar sua mente selvagem de modo a criar beleza ou clareza sem igual, pode ganhar um Prêmio Nobel, como John Nash. Mas, outra vez, se tivesse alucinações noutro ambiente social, podia ser uma viagem psicodélica normal durante a dé­cada de 1960 ou o trabalho normal do pajé de sua tribo.

Uma das morais desta história é: mesmo as “doenças” de­mocraticamente eleitas do chamado tipo mental podem ser con­sideradas normais caso as circunstâncias sociais sejam propícias. Mas esta moral é uma rua de mão dupla. Se as circunstâncias sociais forem propícias, muitos problemas que de jeito nenhum são doenças podem ser “diagnosticados” como se fossem. E isso pode lhe trazer grandes problemas.

Por exemplo: se você condenasse a antiga União Soviética morando lá, podia ser internado num hospital psiquiátrico em vez de ir para uma prisão política. Por quê? Porque a antiga União Soviética foi declarada pelo Partido um “paraíso dos trabalha­dores”. É óbvio que quem faz objeções a viver no paraíso está maluco. Isso é bastante lógico, mas chamar o inferno ou o pur­gatório de “paraíso” todos os dias, em massa, não faz com que se transformem nisso. Também é claro que se pode abusar da prática médica como meio de controle social ou político.

Outro exemplo: no final do século XIX, todos os candida­tos a empregos públicos no Estado de Nova York (entre outros lugares dos Estados Unidos e do Reino Unido) tinham de se sub­meter a exames frenológicos. A frenologia era ostensivamente uma “ciência” que detectava as características da personalidade das pessoas pela localização de várias protuberâncias do crânio. Uma protuberância atrás da orelha esquerda significava, supos­tamente, que o candidato era corajoso; atrás da orelha direita, egoísta. Dúzias de traços de caráter foram assim “mapeados” nas protuberâncias de todo o crânio. Mas acontece que a frenologia era uma ciência completamente falsa e ainda bem que sua capacidade de exercer controle político e social teve vida curta.

Vejamos outro exemplo: suponhamos que você passou por uma má experiência de vida que lhe causou profunda impressão. Talvez tenha sido assaltado, surrado ou estuprado. Talvez tenha sofrido um grave acidente de carro, ou sido atacado por um ani­mal perigoso, ou participado de combates ou alguma outra situa­ção ameaçadora. Se ainda é incomodado pelo passado, pode ser “diagnosticado" como portador de TEPT, ou Transtorno do Es­tresse Pós-Traumático. Parece impressionante, não é? O que sig­nifica exatamente? Significa que você é incomodado pelo passado. Ou seja, você é incomodado por suas lembranças do passado, seus sentimentos a respeito, suas perguntas sobre ele e seu desejo de entendê-lo para se autopreservar. Desde quando lembranças se tornam uma doença a ser diagnosticada por médicos e alguns psi­cólogos? É essa a melhor explicação que conseguem conceber? Desculpem, mas os filósofos podem fazer igual ou melhor! Todos têm lembranças ruins, assim como boas, mas precisam de expli­cações melhores, e não piores, de seu significado.

O TEPT é uma doença real? Ou é meramente um mal-estar? É classificado como “doença” pelo DSM (Manual de Diagnósti­co e Estatística) da Associação Psiquiátrica Americana. Assim que algum mal-estar é votado para ser incluído no DSM como ‘‘doença", os psiquiatras e psicólogos clínicos podem “diagnosticá-lo". Sim, as “doenças” do DSM são democraticamente elei­tas! Cada vez mais o gerenciamento dos custos da assistência médica exige que os terapeutas da palavra façam “diagnósticos”, senão as seguradoras de saúde não os reembolsam por seus ser­viços. Assim, é bom que encontrem alguma “doença”, se que­rem ganhar a vida. O TEPT é uma doença útil. Cobre um grande terreno: todo o seu passado. Quanto mais velho se fica, mais coisas podem ter dado errado na vida.

Todo mundo tem um passado e quase todo mundo lamenta ter feito ou não certas coisas, e quase todo mundo consegue recordar coisas agradáveis e desagradáveis que lhe aconteceram. Como orientador filosófico, eu diria que quem se sente incomo­dado com o passado tem algum mal-estar, mas não necessaria­mente uma doença. Tratar a doença como se fosse um mal-estar é um tipo de erro; tratar o mal-estar como se fosse doença é outro. Como saber a diferença? Assim como a arte do bem vi­ver, nem sempre é fácil.

E seu o ônus de pensar por si mesmo e descobrir o tipo certo de auxílio para a sua situação. O melhor tratamento é o trata­mento adequado. Pergunte. Procure um médico e certifique-se de estar clinicamente bem. Procure um psiquiatra, um psicólo­go, um psicoterapeuta, um assistente social ou um orientador filosófico e peça também suas opiniões profissionais. Enquanto isso, visite sua avó e seu guru local. Mande pôr as cartas do tarô. Mas lembre-se: assim como você deveria ser considerado ino­cente até que provassem sua culpa em questões criminais, tam­bém deveria ser considerado estável, funcional e saudável até que provassem sua instabilidade, disfunção ou insanidade em questões civis, ou seja, na conduta pessoal e profissional da sua vida. Mas a suposição de inocência e a de sanidade foram desgastadíssimas nos últimos anos por forças políticas, sociais e comer­ciais que trabalharam arduamente para minar suas liberdades fundamentais. Isso torna mais difícil conseguir imparcialidade no tribunal, assim como uma opinião isenta de profissionais de “saúde mental” sobre seu mal-estar.

Por exemplo: há algum tipo de coisa acontecendo em sua vida? Tem de se levantar e ir trabalhar toda manhã? Tem reuniões marcadas, apresentações a fazer, prazos a cumprir? Está se pre­parando para provas finais, entrevistas de emprego ou um encon­tro? Está passando por uma transição difícil, como um divórcio ou mudança de carreira? Está criando uma criança ou adoles­cente que venha passando por uma transição difícil? Tem evita­do um confronto iminente com o cônjuge, um colega ou o chefe?

Ainda tenta entender o terrorismo? Se algum desses cenários lhe traz alguma preocupação, então supõe-se que você tenha uma “doença”. Chama-se Transtorno da Ansiedade Social Generali­zada (TASG) e o principal medicamento para “tratá-lo” é o Paxil [antidepressivo cloridrato de paroxetina, vendido no Brasil como Aropax]. Este medicamento, que exige receita médica, vem sendo amplamente anunciado nos EUA, no horário nobre, como panaceia para a chamada “doença” de ter preocupações na vida! O que isto nos diz sobre a suposição de sanidade? Diz que, se você sofre de algum mal-estar, seja qual for, tem uma doença chamada TASG. Em outras palavras, supõem que você seja ins­tável, desajustado ou coisa pior. Quem supõe? As empresas farmacêuticas, que pretendem ganhar muito dinheiro convencendo você de que seu mal-estar é uma doença. Isso não é ciência; é comércio. E no comércio, acautelem-se os compradores.

Como orientador filosófico, eu diria que preocupar-se com os acontecimentos importantes da vida é perfeitamente natural. Atletas e artistas costumam sofrer de “comichões” no estômago antes do início do jogo ou do espetáculo. E isso é bom sinal: significa que estão envolvidos no processo e preparam-se para fazer o melhor. Se não sentissem nada antes, significaria que nem se importam. Quando suas “comichões” ficam fortes demais e se transformam em “angústia da apresentação” — outro mal-estar que não é doença — atletas e artistas têm várias opções à disposição. Betabloqueadores, hipnoterapia, psicoterapia, meditação, ioga, biofeedback e outras técnicas de relaxamento são opções viáveis. Qual delas é melhor depende do caso.

E o que é melhor para seu mal-estar específico também de­pende de você. Assim, se lhe basta ser “diagnosticado” pelo Dr. TV, então ótimo, e melhor ainda para a indústria farmacêutica. Mas se você realmente se preocupa com sua vida, está fadado a sofrer de algum mal-estar ao prever acontecimentos importan­tes e preparar-se para eles. Isso não é uma doença; é uma opor­tunidade! A fraude toda se baseia em sua confusão: se soubesse a diferença entre mal-estar e doença, não precisaria de remédios para tratar dos desafios normais da vida. Então do que você precisa? De uma filosofia de vida! E este livro vai ajudá-lo a desenvolvê-la, ou a articular aquela que já desenvolveu. A vida não é uma doença. E suas dificuldades e tribulações, que às ve­zes provocam mal-estar, também não são sintomas de doença.

Não me entenda mal. A pesquisa médica, financiada pelas empresas farmacêuticas, desenvolveu alguns potentes medica­mentos “milagrosos” para curar ou controlar doenças de verda­de. A natureza, mestra dos bioquímicos e farmacêuticos, também criou medicamentos espantosos com o mesmo objetivo, muitos dos quais ficarão desconhecidos até que transformemos selvas e florestas em estacionamentos. Há quem realmente se beneficie com fórmulas sintéticas como Prozac ou Aropax, assim como outros se beneficiam com ervas naturais. Mas quando a química do seu cérebro se estabilizar e você estiver funcionando bem, ainda vai precisar de uma filosofia de vida para lidar com todos os mal-estares que está fadado a enfrentar. Felizmente, ainda pode obter orientação filosófica “sem receita médica”.

Assim, por favor, pense com cuidado sobre a diferença en­tre doença e mal-estar. Se acha mesmo que sofre de uma doença clínica, dê um jeito de obter ajuda médica adequada: exames, diagnóstico e tratamento. Mas se sofre de um mal-estar, que é um desconforto na consciência e não uma disfunção do corpo, procure ajuda adequada para isso também. Examine seu modo de pensar e de viver. Dê um jeito de entender a sua situação e aplique os princípios que melhor o guiarão nesta travessia. Isso se chama “filosofia aplicada”. O nome que Aristóteles dava a isso era phronesis, ou sabedoria prática.

Nem sempre é possível mudar as circunstâncias da vida, mas sempre se pode mudar a maneira como as interpretamos. A maneira como você interpreta estas circunstâncias é nada mais nada menos que sua filosofia de vida! Eis minha pergunta: sua filosofia de vida funciona a seu favor, contra você ou não funciona? Se já funciona, ótimo; mas você pode fazê-la funcionar ainda melhor. Se funciona contra você, não é tão bom assim; mas ainda se pode fazer com que passe a funcionar a seu favor. Se não funciona, é uma perda de tempo; mas é possível consertá-la e fazê-la funcionar.

Fonte:

MARINOFF, Lou. Pergunte a Platão. 2ª. ed. – Rio de Janeiro: Record, 2005. p.19 - 25

  

O caso de Ed: vizinhos barulhentos

Vamos começar com o cliente que mencionei no início do capítu­lo, que me perguntou sobre “o jeito certo” de lidar com vizinhos barulhentos que lhe perturbavam a paz. Os novos moradores do apartamento em cima do de Ed tinham filhos muito baru­lhentos e parecia que ninguém na casa sabia andar sem bater com os pés nem falar sem gritar. E faziam ambas as coisas todas as horas do dia e da noite, O teto era fino e cada pisada parecia um trovão. Também recebiam uma torrente de hóspedes apa­rentemente interminável e deixavam o som e a televisão aos berros o tempo todo. Para piorar as coisas, Ed trabalhava em casa e assim não podia fugir do massacre nem para ir ao traba­lho. Sua paz de espírito estava sendo realmente perturbada e sua capacidade de trabalhar e descansar na própria casa gravemen­te comprometida. Embora algumas pessoas consigam simples­mente ignorar esses barulhos, outras são supersensíveis. Ed era do tipo sensível.

Conforme Ed e eu conversávamos, exploramos seis possíveis rumos de ação: defensivo, amigável, ofensivo, retaliativo, evasivo e remediador. Ed acabou experimentando quase todos, os caracterizar rapidamente a ética de cada um. Defensivamente, ele poderia tentar bloquear o barulho com revestimentos à prova de som, ouvindo música ou assistindo à tv com fones de ouvido e assim por diante. Esta é uma forma de teleologia benevolente: obteria um bom fim (paz e tranquilidade) por meios puramente defensivos. Nenhum dano causado ninguém. Infelizmente, contudo, as perturbações que vinham cima atravessaram as defesas tecnológicas de Ed.

Sendo amigável, tentou sentar-se com eles e fazê-los perceber seu sofrimento, ver se se dispunham a cooperar e encontrar maneiras de diminuir a perturbação. É a ética centrada no ou­tro de Levinas em funcionamento. Contudo, eram maus vizinhos, porque não se importavam em estar incomodando. O sistema de Levinas desmorona se o outro que você reconhece deixa de reconhecer você, também, como outro.

Assim, Ed passou à ofensiva e fez uma queixa contra eles junto à associação do condomínio. Os vizinhos foram multados por perturbar a paz, mas não pararam. (Na verdade, pioraram.) Em termos éticos, este é um caso de moralismo legal: temos leis contra perturbar a paz e justificativas morais para aplicar essas leis para restaurar a paz e a tranquilidade. E também um caso de dever prima facie: os pais têm deveres para com os filhos, que incluem permitir-lhes tempo suficiente para brincar e socializar-se. Mas os pais também têm o dever de ensinar aos filhos respei­to e consideração pelos outros, tais como os vizinhos. Mas, como neste caso, alguns pais não pensam nem refletem sobre seus deveres parentais.

Assim, Ed pensou em retaliação, gerando ele próprio muito barulho — dando-lhes uma prova do próprio remédio. Mas não o fez, principalmente devido à deontologia. A ética judaico-cristã da criação de Ed ensinava-lhe que “não se conserta um erro com outro erro”. E Kant também diria que é errado retaliar, porque se todo mundo retaliasse a cada mal causado (real ou ima~ rio), o conflito não teria fim — e dar-lhe fim seria supostamente a principal razão de retaliar.

A seguir, Ed poderia tentar fugir à perturbação tentando não ficar em casa nas piores horas. Esta, em parte, era uma questão sociobiologica: Ed acreditava ser “supersensível” por natureza e “programado” para não tolerar muito bem o barulho Acreditava também que seus vizinhos eram pessoas naturalmente barulhentas. Algumas são. Neste caso, então é claro que E tinha de encontrar outro lugar para trabalhar. Mas como trabalhava em casa, a lógica ditava que encontrasse outro lugar para morar.

Finalmente, como remédio, Ed moveu-se para um lugar muito mais silencioso. Mas sua interpretação ética final deste episódio foi budista. Por quê? Porque Ed acabou assumindo parte responsabilidade por seu próprio mal-estar. Uma vez que era capaz de “possuir” seu sofrimento, estava livre para tomar providências para deixar de tê-lo. Antes que a filosofia possa mu dar sua vida, você pode ter de mudar a sua filosofia. Na verdade é simplíssimo. Em vez de tentar obrigar seu ambiente a mudar obrigue-se a mudar seu ambiente. Este, principalmente, é um ato de vontade. Visualize o tipo de lugar onde precisa estar par realizar suas próximas tarefas na vida, para cumprir seu deve da forma como o concebe. Agora, faça com que a visualização fique o mais clara possível e persista na vontade de tornar real essa visão. Aí, o caminho para sua realização aos poucos se materializará. Você se tornará aquilo que deseja. Este é o núcleo dos ensinamentos de Buda. Também é possível, desejável e preferível atingir suas metas sem prejudicar os outros.

Faz alguma objeção? Está pensando: “Por que ele teve de mudar-se? Por que deixou que o expulsassem, quando eles é que estavam errados?” Supõe-se que seu lar seja o seu castelo (na lei inglesa consuetudinária) e seu refúgio. Mas os maus vizinhos tinham invadido o castelo de Ed e estragado seu refúgio. Assim, tudo se resumiu a isso: ele preferia travar uma guerra justa contra os vizinhos ou viver em paz com outros vizinhos em outro lu­gar? Esta questão é retórica; a paz é sempre melhor. Mas é pre­ciso vontade (e coragem) para buscá-la.

O bom senso mais adiantado de todos sugere que Ed veja essas perturbações como lição importante do cosmo (a ordem das coisas, o Caminho), que lhe ensina que está na hora de en­contrar um lugar melhor para morar. Depois de se instalar, pode enviar um bilhete aos vizinhos barulhentos agradecendo-lhes por terem sido catalisadores de uma mudança positiva. Além disso, em termos de carma (no budismo, o carma é a vontade e os fru­tos da vontade em ação, e não o destino), a reação de Ed à pro­vocação dos vizinhos determinará se seu próximo lar será melhor ou pior que o atual.

Na outra ponta da escala, a ética budista classificaria a reta­liação como o pior dos recursos^ Por quê? Porque é claro que as pessoas que perturbam de forma consciente e regular os seus vizinhos, seja sem pensar ou deliberadamente, estão se pertur­bando a si mesmas. Se Ed permite que o problema dos vizinhos vire um problema seu, tudo o que ganha são problemas. Se ten­ta aliviar seu sentimento problemático com a retaliação, só vai multiplicar seus próprios problemas, fazer o conflito crescer ou até cometer um crime e ir para a cadeia. Se chegasse a este pon­to, é bom lembrar que a cadeia é, entre outras coisas, um lugar muito menos reservado do que o lar de Ed e o verdadeiro opos­to do que supostamente queria: paz e tranquilidade. Mas se ele se muda sem retaliar, recusando-se a ser perturbado pelos pro­blemas dos vizinhos e grato por mandarem-no para um lugar melhor, obterá a serenidade. Esta solução harmonizou-se com Ed e também resolveu a situação.

O mundo está sempre cheio de provocações. Seu desafio filosófico é reagir, ou não, da forma mais sábia possível. Afinal de contas, é sua reação atual que determinará as circunstâncias futuras. Isso é verdade para todo tipo de provocação na vida.

 

Fonte:

MARINOFF, Lou. Pergunte a Platão. 2ª. ed. – Rio de Janeiro: Record, 2005. p.67 - 71

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